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Réplica tardia

Outro dia, quando estava no trabalho, tive uma conversa desconcertante com um dos dançarinos. Estávamos do lado de fora do camarim, fazia um calor insuportável e os figurinos no espaço apertado eram claustrofóbicos. A melhor opção era aguardar onde soprava uma brisa e disfarçar o nervoso com alguma distração. A princípio troca de experiências leve e interessante, o assunto logo enveredou a tema mais filosófico. Acontece que essa pessoa não estudava dança apenas como artista, mas também como futuro acadêmico. Munido de argumentos e referências, estruturou a conversa a parecer uma autoridade. Fiquei resumida a pensamentos inarticulados e a insatisfação profunda com o que ele dizia. Agora me ofereço direito a réplica.

O problema começou, mas não se resumiu, com a seguinte frase: “Todo movimento é dança”. Não! É difícil escolher por onde começar a apontar o que tem de errado nesse pensamento. É uma afirmação falsa e inútil, não diz nada sobre a dança. Parece óbvio para qualquer leigo que algumas coisas são dança e outras não; naturalmente essa distinção de categoria é feita, afinal palavras têm significado. Exemplo: Um jogo de basquete. Qualquer um que sair de uma partida de basquete e comentar como os jogadores são excelentes dançarinos terá a sanidade questionada. Por mais graciosos, por mais belos que sejam os movimentos realizados, há diferenças evidentes. Mas trataremos disso daqui a pouco. Antes, falar que dança é movimento (outra afirmação ambígua e inútil, mas verdadeira). Já que comecei, vou à carne do que quero dizer. Minha réplica vai consistir em tentar de alguma forma categorizar a dança. Se não consigo definir de forma direta, posso começar pelas beiradas, como brigadeiro quente.

Logo que se inicia esse tipo de discussão, a definição aparece como grande problema. A frase que destratei acima é tentativa falha de conceituar o que é dança. Categorizar é missão perigosa, a consequência óbvia é excluir e marginalizar. O que fazer com algo como a dança (ou a arte), que está em constante transformação? Há sempre novas possibilidades a serem abarcadas, corre-se o risco de excluir valores inestimáveis e se tornar caduco. É ainda mais difícil por ser um conceito elusivo: pode-se identificar com clareza o que é, mas articular verbalmente esse “é” pode ser quase impossível. Um fenômeno comum, acontece o mesmo com o conceito de tempo. Não significa que não se deve tentar ser preciso ao tratar o tema.

Por ser tão escorregadio tende-se a amplitude e ambiguidade, assim pelo menos tudo vale. É por isso que grandes absurdos se tornam lugares-comuns, como o conceito de “pequena dança” (essa ideia faz parte das muitas problemáticas nascidas da conversa que mencionei), a dança que é o movimento de suas células… Como pode-se notar, sou veementemente contra a ideia.

Então, como mencionei: dança é movimento, mas nem todo movimento é dança. Por quê? A primeira objeção que posso fazer é que na dança há claramente preocupação estética. Embora possa se ter um interesse estético no basquete, ele não é crucial para a essência do esporte. Os movimentos têm finalidade específica, não importa como são executados, contanto que aquela seja atingida. A dança está preocupada com o “como”. Aqui pode-se iniciar o processo de distinção. E a ginástica, em que há uma preocupação estética na movimentação? Tendo excluído as movimentações que não estão preocupadas com a forma e execução, me deparo com aquelas que possuem essa característica e mesmo assim não são dança. Aqui entra uma complexidade diferente.

A atividade humana é regida por conjuntos de regras, cada contexto tem sua rede de conceitos pré-estabelecidos pelos quais um comportamento se torna inteligível. Para entender determinada ação é preciso localizá-la dentro desses conjuntos. A arte tem conceitos perceptuais próprios, ou seja, são aplicáveis apenas a ela. Quando se encara um objeto de arte, aplica-se tais conjuntos de regras que guiam a percepção do que se vê e o entendimento de significados criados pelo artista. O entendimento de tais significados permite que algo exista além da experiência estética. A normatividade possibilita a diferença entre fazer algo, bem ou mal, e não fazê-lo.

A dança, portanto, existe como arte dentro de sua própria rede de conceitos perceptuais, o que a distingue é a formação de significados através de suas estruturas formais. De outra forma o movimento persiste como apenas experiência estética, muito próximo do cheer (liderança de torcida) e da ginástica. É essa também a distinção da dança “artística” daquela informal em contexto de lazer. A percepção que se tem do movimento e da intenção do sujeito que o executa é essencial para a compreensão do que se está vendo. O entendimento das tradições e convenções de uma forma de arte são fundamentais para a percepção de algo como objeto artístico. Essa, ao meu ver, é a diferença fatal entre as categorias.

Houve uma construção da dança como forma de arte, em que se excluiu e agregou conceitos, práticas e técnicas. Me agrada a comparação da dança com linguagem. Uma língua, mesmo que mal falada, continua sendo ela mesma, independente de variações regionais e temporais. O português do século XV continua sendo português, assim como mantém sua identidade linguística na boca de um alemão. As diferentes linguagens na dança também evoluem e se modificam pelo uso que as pessoas fazem, criam-se tradições e as revolucionam. Essa multiplicidade e maleabilidade torna a língua excelente metáfora.

São essas características que tornam impossível definir a dança pelo movimento. Apesar de haver normatividade, não há uniformização. Não existe um grupo de movimentos exclusivos à dança ou comuns a todas as linguagens, estilos. Assim também não há limites ao que pode ser incorporado pelo artista. Por serem linguagens não-verbais adquirem caráter universal, sendo compreendidas e assimiladas por diferentes culturas e épocas.

Mais cedo, toquei no tópico do sujeito. Outro elemento crucial para a dança é a ação do artista. Essa ação é consciente e intencional. Mesmo quando há alguma “aleatoriedade”, ela está presente como ferramenta coreográfica, é proposital. É impossível existir dança sem consciência. O dançarino (ou coreógrafo) se utiliza dos conhecimentos das estruturas formais da dança para criar significados indissociáveis do criador e do executor. Essas estruturas estão em constante expansão e parte da função do artista é usar criatividade para apresentar ao mundo novas formas de representá-lo.

O movimento das células (a “pequena dança”) não pode ser dança por não comungar com nenhuma das características fundamentais que permitem categorizar algo como tal. Assim como a “dança dos planetas” é tão dança como a “arte de flertar” é arte. Embora se possa usar a expressão e ser compreendido, ela não diz nada sobre a Dança ou sobre a Arte.

Essas duas atividades são indefiníveis. Mas é possível identificá-las e pensá-las de forma objetiva. Não é realista imaginar que eu tenha realmente feito algum progresso em articular de forma produtiva o que é dança. Mas da próxima vez que estiver conversando com meus colegas de trabalho, poderei pelo menos discordar com alguma convicção e a certeza de que há muito a ser desenvolvido na minha perspectiva do assunto. Também posso ir dormir sem me preocupar com ruminações argumentativas.

Guida, 21
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