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Reportagens

Por trás dos livros

Pequeno mundo de letras e silêncio dentro do grande mundo universitário, a Biblioteca Central da Universidade de Brasília é movimentada também por uma série de rumores e murmúrios que a agitam, desde o trabalho de restauro de obras até reuniões para discutir músicas em velhos discos de vinil. Nem mesmo os rumores de que a biblioteca foi construída sobre uma nascente de água são infundados. Como as reportagens a seguir vão deixar claro, a biblioteca é um infinito bastante particular.

entre páginas e memórias

A Biblioteca Central (BCE) da Universidade de Brasília (UnB) tem desde obras de grande circulação até raridades do século 15. Para manter esse patrimônio bibliográfico, existe o setor de Conservação e Restauração (RES), responsável por fornecer dados que auxiliam nas atividades de ensino, pesquisa e extensão dos campi, por meio de  equipe dedicada a enfrentar o desafio de manter livros e documentos em condições adequadas para uso e estudo. 

Há um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges intitulado “A biblioteca de Babel”, em que os bibliotecários percorrem corredores infinitos em busca de ordem e significado. É um pouco o que acontece com quem trabalha em restauração, essa arte de transformar livros danificados em coleções organizadas e acessíveis.

As atividades do setor estão divididas em Acervo Geral (AGE), responsável por cuidar de livros do acervo corrente, de referência e histórias em quadrinhos, e Coleções Especiais (Colesp), que conta com obras e documentos das coleções formadoras do acervo da BCE, como partituras, cordéis, vinis, jornais, mapas, coleção de estudos clássicos, obras raras, coleção de direitos humanos e arquivo Carlos Lacerda — acervo doado para a instituição pela família Lacerda, com mais de 60 mil obras, dentre elas quadros, livros, manuscritos, cartas e documentos.

A restauração de livros envolve série de etapas, a começar pelo diagnóstico minucioso do estado da obra. Páginas rasgadas, capas deterioradas e cadernos soltos são problemas comuns. Manter características da obra, tais como cores, estilo, encadernação, costura, dentre outros, é papel dos restauradores. “Cada um no setor tem preferência e maior domínio de uma parte do processo, por mais que todos fazemos, eu, por exemplo, prefiro costurar os livros”, comentou Cecília Araújo, que trabalha no setor. Conforme a complexidade do dano, restaurar varia de três dias a  semanas.

Diversos fatores contribuem para deterioração de acervos, como vandalismo, água (infiltrações, chuvas, enchentes e limpeza inadequada), fogo, atividade humana, problemas nas instalações prediais, raios e desastres naturais, transporte e manejo inadequados e armazenamento incorreto. Iluminação, radiação ultravioleta, infravermelha, exposição excessiva à luz, poeira, poluição atmosférica, pragas (organismos vivos), temperatura incorreta e umidade relativa  (baixa, alta ou oscilante) também podem gerar danos irreparáveis.

É necessário detectar textos e sublinhados feitos com grafites e canetas, lombada solta e abrasão, ondulações nas folhas e marcas d’água, obras com sujidades na capa, costura fragilizada, adesivos, grampos oxidados, páginas soltas, costura partida, rasgos, acidez e perda de suporte. Nas palavras de  Sara Borges, outra profissional da área, “é fundamental optar pela conservação preventiva e curativa antes do processo”. Os especialistas do setor aplicam métodos que variam de acordo com o material recebido, afinal, não restauram apenas livros, mas também documentos, cartas e jogos — oriundos do Espaço POP. Por exemplo, cartas podem ser plastificadas para evitar danos.

Restaurar livro requer mais do que habilidade manual, é necessária familiaridade com materiais específicos. Uso de fitas especiais para não danificarem o papel no decorrer do tempo, água deionizada (solução aquosa que contém apenas moléculas de água e íons hidrogênio), reguladores de pH, papel de arroz para reparar folhas, entre outros. Esses recursos são caros, portanto, são considerados prioridades e exigem demanda constante no setor. “Quando um livro da AGE tem um exemplar e, por acaso, está danificado, os alunos chegam até nós com pedido de prioridade, restauramos e devolvemos, isso é muito importante, devido ao tempo que levaria para encontrar outro”, explicou Araújo. Apesar das dificuldades, como burocracia para adquirir materiais e adaptar o espaço para um laboratório de restauração, a equipe mantém alto padrão de qualidade.

“Cada livro possui história única, nosso trabalho é garantir que essa história continue viva”, disse Borges. O trabalho realizado no setor de Restauração e Conservação é vital para preservar conhecimento e história contidos na BCE. Com dedicação e cuidado, a equipe mantém livros em boas condições e garante que futuras gerações possam acessá-los e aprender com eles. 

A profissão conservador-restaurador até o presente não foi regulamentada. No Brasil, existem cursos de formação técnica, tecnólogos, graduação e pós-graduação que ajudam a exercer ofício, como acontece com Sara Borges, que é técnica em administração, e com Cecília Araújo, formada em relações internacionais e mestranda em políticas públicas, que trabalham no setor de restauro de livros da Biblioteca Central. Bibliotecários, diferente dos conservadores, desempenham o papel da regência do ambiente e orientação de auxiliares, usuários e supervisores.

Diagnóstico

Saiba mais

Mariana Ramos,  18
Jornalismo

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Sons e letras

Nem só de livros e mesas para consultá-los vive a Biblioteca Central da Universidade de Brasília. O Clube do Vinil completa dois anos de existência em 2024 e acontece em quintas-feiras alternadas, ao meio-dia, no Auditório 1 da BCE. Nele, membros da comunidade acadêmica e outros entusiastas da música escutam e discutem álbuns disponíveis no acervo de Coleções Especiais (Colesp). 

De acordo com Marcelo Scarabuci, idealizador do clube, a iniciativa surgiu da necessidade de divulgação do acervo da Colesp, que contém mais de três mil exemplares de variados gêneros musicais, como rock, música regional, reggae, jazz, funk e gospel. Para aqueles interessados em escutar música em discos de vinil, é possível realizar empréstimos ao visitar o setor de Coleções Especiais da biblioteca.

Os encontros são conduzidos por membros da comissão coordenadora e, na maioria das vezes, um convidado. Ao início, os dois contam a história do álbum escolhido e da banda ou cantor que o compôs. Em seguida, o público escuta o disco em uma das vitrolas fornecidas pela Colesp e discute a obra entre faixas.

Também advindo do acervo de coleções especiais, o Cineclube — que exibe e debate filmes no auditório da BCE toda quarta-feira às 12h — foi inspiração para o modelo. O Cineclube, conhecido como Cineart, operou entre 2006 e 2008 e foi reativado em junho de 2022. A proposta é ampliar a exibição de filmes, promover debates e contribuir com o conhecimento produzido pela universidade ao destacar temas que são pesquisados dentro da perspectiva cinematográfica. 

O Clube do Vinil surge como ponto de encontro para muitos que estão em contato pela primeira vez com vitrolas. Em encontro realizado no dia 1º de agosto, Elvys Barros, estudante de filosofia, destacou: “Vinil é a oportunidade que temos de furar a bolha do Spotify”, ou seja, o clube não inspira apenas novos entusiastas a explorar diferentes formatos, como também oferece alternativas ao universo digital. Assim, o clube, além de promover a união de estudantes universitários e membros da comunidade externa por meio da música, serve como ponte para o mundo pré-digital.

O Clube do Vinil conta com apoio de diversos outros membros que têm garantido a manutenção do projeto durante esses quase dois anos. Dentre eles, destacam-se Nathália Telles, Elvys Barros e João Nascimento. No entanto, a história desses três ultrapassa o Auditório 1 da Biblioteca Central. 

Nathália Telles, estudante de filosofia, esteve presente no primeiro Clube do Vinil e participou da composição do formato das reuniões. Cantora e fã de Rita Lee, pôde performar a canção “Ovelha negra” na reunião de fim de março de 2023, quando os álbuns Fruto Proibido e Tutti Frutti, de Rita Lee, foram debatidos. Barros mediou os quatro últimos encontros. O papel dele é guiar a conversa entre convidado e ouvinte e auxiliar com material de apoio — slides com letras de canções, imagens ilustrativas dos tópicos abordados etc. 

Em 2023, durante sarau, Telles e Barros subiram ao palco com alguns músicos da banda do pai da cantora. Os dois tocaram músicas d’Os Mutantes, ela, no canto, e ele, no violão, com acompanhamento do baixista Leonardo Araújo. Após apresentação, os três passaram a se reunir para tocarem juntos na casa de Telles e convidaram Nascimento, baterista, e Iuri Costa, guitarrista. 

O grupo composto pelos cinco foi chamado de Os Ordinários. Juntos, compuseram canções como “Charuto com piré”. Além das composições próprias, os músicos também criaram versões inusitadas para músicas conhecidas, dentre elas versão valsa de “Gostava tanto de você”, de Tim Maia, e adaptação punk de canções de Pixinguinha. 

Os Ordinários exemplificam a conexão que pode surgir da música, enquanto o Clube do Vinil demonstra a integração advinda de escutá-la. Cícero Muniz, pós-graduando em sociologia na UnB e frequentador do Clube do Vinil, afirmou: “Acho essa iniciativa muito interessante porque promove a integração das pessoas. Percebo uma falta de atividades como essa na UnB onde, às vezes, ficamos muito dentro dos nossos próprios departamentos. Divulgar essa forma de contato com o que é produzido dentro da universidade é muito importante”. 

Joana Pantoja Costa,  18
Jornalismo

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Sob a superfície

Durante anos, a história da Biblioteca Central da Universidade de Brasília (BCE/UnB) ter sido construída sobre manancial foi tratada como lenda urbana. No entanto, o fato é verídico e não apenas influencia a infraestrutura como traz desafios significativos para o funcionamento do prédio.

Construída em cima de nascente e incompatível com ambientes úmidos, a BCE foi inaugurada em 1962.  O que poderia ser problema não recebeu devida atenção e, por consequência, resultou em frequentes inundações. Negligência e desinteresse foram notáveis a ponto dessa mina d’água sequer ter sido nomeada. Enquanto na atualidade esse assunto é pouco conhecido entre alunos, anos atrás, em especial entre aqueles mais antigos, conversas a respeito das constantes inundações reforçavam veracidade da história. 

O administrador predial da BCE, Fernando Glaydson, confirmou: por muito tempo, o segundo subsolo da biblioteca sofreu com infiltrações severas e chegou a acumular até 1,20 metro de água em épocas de chuva intensa. “As três bombas de sucção que funcionavam 24 horas por dia nem sempre conseguiam conter a vazão”, explica Glaydson. O ano de 1962, junto ao início da construção da biblioteca, marcou o início dos problemas com a nascente. Havia tubulação com papel de drenar a água, mas que não resistia a tempestades intensas, tanto pela grande quantidade de água redirecionada para fora do subsolo da biblioteca, quanto pelo volume pluvial que juntava-se à mina. “Não caía água da chuva aqui dentro, mas a mina subia e não tinha como tirar”, complementa Glaydson.

Os esforços iniciais eram insuficientes para conter a água, que causava infiltrações, mofo e problemas estruturais. A melhoria para o problema veio somente décadas depois, no final dos anos 2000, quando obras de drenagem foram realizadas de forma a canalizar a água da nascente para uma galeria pluvial despejada no Lago Paranoá.

O segundo subsolo era utilizado para armazenamento de materiais de limpeza, livros ainda não-catalogados e mobílias danificadas. Além disso, constantes quedas de energia causadas pela água que subia e alcançava a altura das caixas de energia dificultavam o uso do sistema de informática, essencial para as operações da biblioteca. Havia um único funcionário encarregado da manutenção dessas bombas: um bombeiro hidráulico contratado pela prefeitura da Universidade, de modo a não oferecer custo adicional.

Embora a água tenha sido controlada, o impacto das inundações ainda reflete nos dias atuais. Livros e materiais estocados no subsolo foram danificados pelo mofo e a área agora é usada para armazenar itens com menor circulação. “Foi há uns 15, 17 anos,” lembrou o administrador, referindo-se à reforma que enfim trouxe alívio à BCE. Essas obras incluíram a substituição das bombas por sistemas de encanamento mais eficientes, e hoje canaliza o fluxo aquático para fora do prédio.

A história da nascente da BCE é um lembrete da importância de se considerar todos os aspectos geográficos ao planejar construções de grande porte. Hoje, a UnB continua a aprender com esse legado e busca garantir que a história não se repita. Com a situação controlada, o subsolo da biblioteca passou a ser utilizado de forma mais segura. A história de como a instituição lidou com inundações que persistiram por mais de duas décadas é modelo de adaptabilidade e inovação. 

Da insistência à mudança

Maitê Doreto,  18
Jornalismo

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