Reportagens
Pesquisa soluciona tipo de alergia ao látex
Mary Ribeiro é aposentada, mas enquanto seguia rotina de enfermeira, usar luvas, ferramenta básica de trabalho, causava sofrimento. Ela descobriu alergia na emergência, área em que precisava manusear produtos de borracha. “Primeiro, tive reações tópicas [na pele], mas toleráveis. Quando comecei a ter edemas [inchaço] nos olhos, não associei ao látex.” Grávida da primeira filha, ficou mais sensível e recebeu diagnóstico: pertencia a grau mais elevado de alergia ao látex.
No parto da segunda filha, em 2001, por serem incomuns equipamentos sem a substância alergênica, Ribeiro enfrentou choque anafilático, forma mais grave de reação ao contato com látex: “Acordei dez horas após o nascimento. Só pude ver minha filha 48 horas depois do parto, quando estabilizei”, relatou.
Em 2016, ela passou pela última crise grave e descobriu ter síndrome látex-fruta, sensibilidade a alimentos que, seja pela embalagem, seja por produzirem proteínas semelhantes às da borracha, provocam resposta alérgica. Desde então, Ribeiro segue dieta restritiva e evita ambientes com potencial de despertar intolerância do organismo, mesmo sem contato direto: “Não entro em lugares com balão, sinto cheiro da borracha de longe e me afasto”.
Há 70 anos busca-se alternativas para alérgicos como Ribeiro. Em 2023, Floriano Pastore, especialista em borracha e professor do Instituto de Química (IQ) da Universidade de Brasília (UnB), criou o Látex-Tan, projeto no qual desenvolve luvas hipoalergênicas de látex tratado com tanino. Solução simples, mas nunca antes pensada. Em 2017, Pastore publicou tese de doutorado com sugestão do uso de tanino para resolver problema alérgico. Dessa forma, troca da amônia, conservante de látex tóxico ao corpo, bloqueia proteínas alergênicas e conserva produto.
Desde a publicação do trabalho, o professor reuniu alunos de graduação e pós-graduação para formar grupo de pesquisa. Alguns desses estudantes foram atraídos nos cursos promovidos por Pastore nas Semanas Universitárias (Semuni), eventos anuais que apresentam projetos da UnB à comunidade. Outros, conheciam o docente da graduação e entraram para o projeto porque fazem mestrado em látex.
Com recursos da Tanac, empresa de tanino, e da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), no final de 2023, um galpão ao lado do Hospital Veterinário da UnB (HVet) foi reformado e virou Laboratório de Tecnologias de Borracha para a Amazônia (TecBor), além de ser fábrica piloto. O lugar, antes usado como depósito, foi cedido pela universidade para trabalho dos pesquisadores.
Malefício das luvas tradicionais
Os problemas relacionados aos dois principais componentes da borracha afetam várias etapas da cadeia produtiva do material. Começa com o seringueiro, que tem primeiro contato com a seiva. A manipulação da amônia, que evapora com facilidade, pode causar cegueira, irritação na pele e problemas respiratórios. Na fazenda Maíra, parceira do projeto, cerca de 150 seringueiros serão beneficiados com a pesquisa.
No produto final, o problema de Mary Ribeiro, não é isolado. A alergia é comum entre profissionais de saúde. Segundo Pastore, muitos hospitais sentem necessidade de ter ao menos uma sala sem equipamentos à base de látex natural, mesmo com perda na qualidade. “Em geral, são substituídos por borracha sintética, que pode atrapalhar a sensibilidade do profissional e é poluente”, explicou o professor.
Dinâmica produtiva
Pastore começou a estudar látex em 1978, no mestrado feito em adesivos pela The City University, instituição em Londres. É apaixonado pela Amazônia e pelas possibilidades que a biodiversidade da floresta traz à ciência. Ele fez parte de projetos a respeito para busca de melhores condições e otimização do trabalho de pequenos produtores.
Nathália Shinzato é engenheira química, está no fim do mestrado com Pastore e conduziu testes junto a uma dermatologista e uma imunologista da Faculdade de Medicina (FM). Foram realizados patch tests — colagem de adesivos com látex tratado nas costas dos voluntários, os quais não recebem nada, por convenção do Conselho de Ética em Pesquisa (CEP). Eles ficam em contato com pele do paciente por 48 horas e depois analisa-se possível reação alérgica.
Há, também, coleta de sangue antes e depois do procedimento. Agora, esses dados estão em análise no Laboratório de Imunologia para comprovar não alergenicidade do composto tratado. Os procedimentos em humanos passaram por aprovação do CEP, processo mais demorado da pesquisa de Shinzato. Antes dessa análise, o material foi submetido a testes prévios em laboratórios detectores de alergias e atestaram resultados seguros para aplicação em voluntários.
Arthur Alves defendeu tese de mestrado em janeiro de 2025 e comparou o produto com tanino e com amônia, por meio de análises físico-químicas, ou seja, análises laboratoriais de propriedades, como pH e resistência. Assim, ele comprova qualidades do látex tratado, o que permite passar da fase apenas experimental, para prática, com aplicação em luvas e outros materiais de forma segura. Além disso, outros alunos conduzem pesquisas auxiliares, como Krysten Costa, engenheira de produção e mestranda em química, a respeito de balata, seiva de outra árvore, e Manoel Messias, químico orientado pelo professor, sobre proteínas do látex, complemento para comprovação da compatibilidade do tanino como inibidor da alergia.
No laboratório, Priscila Veras auxilia processos, como preparação de material. Na fábrica, Amanda Alves produz exemplares da luva, para testagens de alergia e para aplicação da matéria que produzem em produto final. Luís Pimentel é parceiro de Pastore há vários anos e cuida da logística de coleta e transporte de látex. Os três são contratados do TecBor, pagos pela Tanac e FAPDF.
Processo de tratamento
A matéria-prima é coletada na fazenda Maíra e recebe o Aditivo de Tanino para Látex (ATL). A mistura é centrifugada em São Paulo, pois equipamentos têm alto custo e, portanto, não estão disponíveis no DF. O látex centrifugado volta a Brasília com maior concentração de borracha, uma vez que o procedimento separa resíduos excedentes, e vai para fábrica piloto. Mesmo longo, o processo ainda é pouco poluente e o mais eficaz em escala industrial.
Aditivo de Tanino para Látex (ATL) é um líquido desenvolvido pelo TecBor. Ele é separado em duas parcelas, chamadas de C1 e C2.
C1 leva tanino e deve ser adicionado ainda no seringal, para as interações entre o componente e as proteínas do látex acontecerem.
C2 é feito de substâncias fixadoras do composto no látex. Porque, nos primeiros testes, identificaram que tanino saía quando passava por centrifugação, ou descamava durante o tempo, após luvas prontas. É adicionado só depois da chegada do látex ao laboratório na UnB, pois é preciso algumas horas de descanso para a mistura com C1 atingir pH ideal para adição do segundo componente.
Quando tratado, usa-se o látex na produção das luvas. Moldes em formato de mãos são banhados em solução anticoagulante, químico que garante camada fina e resistente de borracha. Depois de secos, são imersos no látex preparado e, de forma manual, fazem bainha, extremidade enrolada para luva não rasgar ao ser vestida.
Por fim, passam por secagem final, ou seja, exposição a altas temperaturas em estufa. Para retirar luvas, aplica-se pó desmoldante, assim evita-se que grudem entre si. O desmoldante mais comum é talco, também alergênico. Mas está em teste, no TecBor, uso da fécula de mandioca, a qual cumpre mesma função. Os moldes são dispostos em esteiras mecânicas, facilitadoras no deslocamento entre um processo e outro.
Costa contou a respeito da aprovação para Agro Learning, programa de bolsas da FAPDF que ofereceu oito milhões de reais distribuídos a projetos do DF e Entorno, voltados ao agronegócio. Nessa nova fase, cientistas querem implantar modelo de seringal com máxima produtividade, onde aproveitam resíduos da seringueira, como casca e folhagens, em geral descartados. Também pretendem mapear clientes interessados no produto da fazenda Maíra, a fim de aumentar vendas, além de ganharem selo verde no seringal, atestado de sustentabilidade.

Etapas do processo de produção das luvas hipoalergênicas de látex tratado com tanino. Crédito: Alice Haraguchi
Relato de pesquisadores
Costa revelou ter dificuldade de pesquisar no ensino superior por causa do excesso de burocracia: “A quantidade de tecnologias incríveis que a universidade produz é absurda, mas não conseguem sair daqui”. Shinzato também disse que pesquisa a esgotou, em especial pelos conflitos de papelada e falta de recursos financeiros. “Mas acho que é assim que a universidade pública, pelo menos aqui no Brasil, funciona. A gente sempre está atrás de recurso e, à medida que acaba, estamos atrás de outro.” Quando questionadas do porquê continuam no projeto, as respostas se assemelham. As duas acreditam no potencial e na revolução que o método pode causar.
Alves falou a respeito do papel social que o chamou atenção em uma palestra do professor: “Fiquei muito empolgado com trabalho social desenvolvido em comunidades amazônicas e com aplicação de tecnologias como forma de transformar a vida de seringueiros, ao levar conhecimento para além da universidade”.
Pastore relatou sobre uma das coisas que o move, o dever da UnB de retribuir serviços à sociedade, princípio fundador da instituição por Darcy Ribeiro. Ele expôs sentimento de responsabilidade pelo projeto: “Eu comecei e agora preciso terminar o trabalho. Quero garantir que as luvas chegarão a quem precisa”.
Alice Haraguchi, 18
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